quarta-feira, setembro 23, 2009

Requiém de um Ano Novo

Este post foi inteiramente escrito com essa música abaixo como trilha sonora. Por favor, clique "play" antes de começar a ler.



Eu vejo a Terra, em altíssima velocidade, urrando em silêncio pelo espaço, a mais de 107 mil quilômetros por hora, levando a Lua junto com ela, numa ânsia de engolir todos os 940 milhões de quilômetros que percorre ao redor do Sol, a cada ano. A Terra recomeça essa corrida a cada 365.25 dias, já faz mais de 4.6 bilhões de anos.

A Terra não segue um Sol parado, fixo no tecido do universo. Em cosmologia não existe nada parado. O Sol ataca desesperados 225 quilômetros por segundo ao redor do núcleo galático, percorrendo 163 mil anos luz a cada 250 milhões de anos. O Sol e outras estrelas que o rodeiam, 300 bilhões delas. Outras estrelas e poeira cósmica, nuvens de gás, berçários de novas estrelas, e fósseis de estrelas que já não fundem mais seu combustível nuclear, e servirão para adubar de metais e semimetais novos sistemas estelares.

Conosco o Sol nos leva neste passeio gravitacional ao redor do núcleo galático, onde se encontra um monstruoso buraco negro de 3.7 milhões de vezes mais massivo que o Sol.

E a Via Láctea, nossa galáxia também não é fixa no espaço e avança. Ela, junto com outras galáxias nas redondezas se afasta de todo o resto a 600 quilômetros por segundo, em uma viagem que ao que sabemos hoje, não tem volta, e acabará por pulverizar todo o conteúdo do universo em uma expansão sem fim.

Esta mesma Terra que segue esta carona gravitacional não é sólida. É quase uma esfera de silicatos e metais derretidos recobertos por uma fina crosta que boia sobre esse magma quente. A crosta se move, às vezes afunda, às vezes colide com outro pedaço maciço, e ao longo de milhões de anos gera formas geológicas inéditas, e aniquila outras.

Sobre esta crosta vivem literalmente milhões diferentes de espécies de seres vivos, entre animais, vegetais, fungi, bactérias e outros. Vários surgindo a cada ano, várias desaparecendo para sempre do livro da vida, ao longo desses 3.5 bilhões de anos de vida sobre a Terra.

Entre esses milhões, existe uma espécie, relativamente nova (menos de 150 mil anos) que não entende que não existem "lugares sagrados" nem na perspectiva do cosmos, nem da geologia - e que conta seus dias desde a "criação" em algo como cinco milhares de anos.

A Lua crescente que vejo da praia me parece sorrir, indulgente dos seus 4.5 bilhões de anos de idade, pegando carona com a Terra, com o Sol e com a Via Láctea, igualzinho a essa espécie, mas infinitamente mais humilde, porque não acha nada.

Feliz 5770

terça-feira, setembro 08, 2009

Da noite quando conheci Cid Moreira na casa do Embaixador

- Ele nunca entendeu uma única palavra do que ele lia - me avisou o Nahum Sirotsky a respeito do Cid Moreira.

- E daí? - Eu dei ombros - ele passou minha vida inteira me dando boa noite e fez uma carreira disso. Não é para qualquer um, né?

O Nahum poderia ter dito que o Cidão dava boa noite para todo mundo. Eu responderia que isso não fazia diferença. Eu estava lá na sala de estar ouvindo o "boa noite", e não importava que havia mais umas 60 milhões de pessoas ouvindo o boa noite também.

Agora quem estava na sala de estar era o próprio Cid Moreira. Que me conste, esta foi a primeira vez na minha vida que eu dei boa noite para ele. Dei boa noite e ainda tirei uma foto - coisa que o Cid Moreira nunca tinha feito até então: tirar uma foto comigo.

E como é o Cid Moreira? Me pareceu em melhor estado do que o Rostbeef que eu tentava equilibrar no prato quando fui ler a mensagem que o Zé Toueg me mandou avisando que o Cid Moreira estava na festa. O prato era meu segundo. O primeiro constava de muito vatapá, arroz, caldinho de feijão e provavelmente mais um monte de coisa boa que não como faz tempo e que não me lembro agora porque comecei a beber cedo. E comecei a beber cedo porque cheguei cedo, e cheguei cedo para poder beber bastante. A lógica circular se deve ao fato de eu ainda pagar impostos no Brasil.

São impostos importantes, que possibilitam os governos (municipal estadual e federal) a construírem escolas, estradas, hospitais, fundo mútuo de corrupção e pagar propaganda eleitoral. Como moro em Israel já faz mais de doze anos, não tenho tido muita oportunidade de fazer valer meus direitos de usar, no Brasil, de escolas, estradas, hospitais e muito menos fundo mútuo de corrupção. Quem me dera poder usufruir pelo menos da propaganda eleitoral que meu rico dinheirinho faz possível. "Vou, pelo menos, usar os fundos federais para beber um pouco", imaginei.

Pelos meus cálculos o governo federal ainda me deve várias feijoadas e algumas garrafas de whiskey. Mas como me proporcionou dar boa noite para o Cid Moreira e ainda falar sobre isso com o Nahum Sirotsky poucos minutos depois, me sinto quase ressarcido.

- Esse meu joelho está fodido. - Explicava o Nahum. - Foi um Gush Katif. Eu estava por lá e me apaixonei por umas vacas que eu vi. Fui me aproximar para ver melhor e um guri árabe me acertou uma pedrada. O outro joelho ficou ruim depois.

Ele contava sentado, segurando a bengala, muito animado, falando sobre tudo um pouco. Eu tentava acompanhar, olhando quem chegava, vendo quem estava lá, procurando conhecidos e de olho na fila para as carnes, que eu já tinha decidido que não ia deixar de pegar.

Uma obrigação cívica me fez deixar o prato ainda vazio de lado e, parado no meio da fila fui cantar o Hino Nacional. Fazia tempo que eu não ficava em pé, em posição de sentido junto com vários outros compatriotas cívicos, cantando tudo errado o Hino. Se é uma obrigação cívica de todo brasileiro cantar errado o Hino Nacional enquanto se segura um prato vazio na frente da mesa das carnes na casa do embaixador, bem como pagar impostos e ver propaganda eleitoral, então era o que eu ia fazer, se era isso necessário para fazer valer todo o vinho que eu estava bebendo (e que, bem como escolas, estradas, hospitais e a propaganda eleitoral, era eu quem estava pagando - embora só usufruísse mesmo do vinho).

Os discursos vieram depois dos dois Hinos Nacionais (do Brasil, e de Israel). Eu já estava bem estabelecido lá no fundo, com mais um copo de vinho e um prato cheio de carne e de farofa. O Embaixador Brasileiro em Israel cumpriu seu dever cívico em dar vergonha alheia em qualquer um que entendesse só um pouquinho de realpolitiks. Como todo cidadão, imagino que o Embaixador deva cumprir seus deveres cívicos, tais como cantar o hino errado e pagar impostos. Porém, como funcionário do Itamaraty, acumula mais esta obrigação: a de causar um enorme constrangimento, falando nada com coisa nenhuma, paz no oriente médio e até pré-sal.

Pouco depois de eu terminar de comer, começou a falar o representante do governo israelense, o Ministro das Finanças Yuval Steinitz. O Ministro das Finanças do governo de Israel é um israelense, e portanto tem deveres cívicos bastante distintos, como cantar o Hino de Israel errado. Eu por exemplo, tive que cantar ambos os hinos errado, como vários outros cidadãos dos dois países - embora eu fosse o único a fazê-lo com um prato vazio na mão. Além disso, ao contrário de todos lá, Yuval Steinitz não só paga impostos como também decide como serão usados. Ou pelo menos deveria, porque não é ele quem faz isso: é o Nataniahu. Ou melhor, a cúpula do partido do Nataniahu. Enfim, além de escolas, hospitais e estradas, impostos aqui vão para conflitos armados, postos avançados na Cisjordânia, e pouca coisa para propaganda eleitoral, ou para me alimentar com vinho nacional.

Yuval Steinitz, além de obrigações cívicas parecidas com a dos brasileiros, como cantar o hino errado e pagar impostos, teve adicionado obrigações cívicas que são só israelenses, como servir exército e tratar brasileiros pelos seus clichés. E bem como o Embaixador, tem a obrigação de causar vergonha alheia no Sete de Setembro.

Seu discurso foi tão estranho quanto improvável. Citou uma copa do mundo no Kibutz Bror Chail, um jogo com a Holanda e nem sequer fez menção ao pró-sal brasileiro, tão festejado pelo Embaixador em seu discurso anterior.

Lá pelas tantas desisti de ouvir, fui buscar mais vinho e procurar o Zé Toueg. Pela enésima vez alguém me perguntou por que eu chamo o Zé de Zé, já que o nome dele é Gabriel.

- Porque Gabriel sou eu. E eu cheguei antes. Tanto no mundo quanto em Israel. Portanto tenho preferência.

- E como ele te chama?

- Emanuelson. Ele Zé, eu Emanuelson e ficamos de acordo.

Só que Emanuelson nunca pegou, enquanto eu realmente não consigo chamar ele de Gabriel e para todos os efeitos já virou Zé.

Achei o Cid Moreira antes de achar o Zé, que estava lá sentado ao lado do Nahum, na beira da piscina. E depois do Cid Moreira, eu vi o Idan Raichel, e depois do Idan Raichel, eu vi um garçon com uma bandeija enorme cheia de quindins, e daí eu simplesmente não vi mais nada.

Comi quindins até o ponto em que eu passei a ver sentido na vida e até no Hino Nacional.

- Cheiro de guerra é cheiro de merda. - Me avisou o Nahum enquanto a gente tomava guaraná. - Quando cai uma bomba do lado de uma pessoa, ela perde total controle das funções intestinais. - E continuou: - Em 1973, eu fui fazer uma reportagem nas linhas perto da fronteira do Sinai com o resto do Egito. Eu fui entrevistar o cara dentro de uma cratera criada por uma bomba, com a esperança na máxima que uma bomba não cai duas vezes no mesmo lugar. Mas caiu. Ali mesmo. Já fechei uns seis contratos para escrever minhas memórias. Mas não escrevo.

- Por que?

- Porque só sei reportar o que vi. Não sei escrever sobre o que eu senti.

- Mas o que você sentiu?

- Dor de ouvido, e cheiro de merda.