domingo, fevereiro 21, 2010

Se você é um esquerdista, digite um. Se é um direitista, digite dois.

- Você ligou para TeleReclamação. Para reclamações sobre o clima, digite um. Para reclamar sobre sua situação econômica, digite dois. Para uma reclamação sobre o governo, digite três. Para reclamações gerais, digite quatro. Para o operador, digite nove, ou aguarde na linha.

- Você digitou três, reclamações sobre o governo.

- Se você é um esquerdista, digite um. Se é um direitista, digite dois. Para o operador, digite nove.

- Você digitou nove. No momento todos os nossos terminais estão ocupados. Por favor, aguarde até que um de nossos atendentes possa lhe atender. Sua chamada é muito importante para nós. Por favor, aguarde.

La donna è mobile
Qual piuma al vento,
Muta d'accento — e di pensiero.
Sempre un amabile,
Leggiadro viso,

- No momento todos os nossos terminais estão ocupados. Por favor, aguarde até que um de nossos atendentes possa lhe atender. Sua chamada é muito importante para nós. Por favor, aguarde.

In pianto o in riso, — è menzognero.
È sempre misero
Chi a lei s'affida,
Chi le confida — mal cauto il cuore!
Pur mai non sentesi
Felice appieno
Chi su quel seno — non liba amore!

- No momento todos os nossos terminais estão ocupados. Por favor, aguarde até que um de nossos atendentes possa lhe atender. Sua...

- Telereclamação boa tarde, quem está falando é Júlia, em que posso ajudar?

- Oi, Júlia. Eu digitei três, para reclamar sobre o governo...

- Sim?

- Pois é, daí o sistema me deu opção de escolher entre direita e esquerda. Acontece que eu não me considero nem esquerdista nem direitista, então decidi falar com o operador. O caso é que...

- Desculpe, senhor. O senhor acaba de colocar uma reclamação sobre o sistema, isto é correto?

- Sim, é, mas não vem ao caso. O que eu queria reclamar mesmo é que...

- Desculpe-me novamente senhor. Mas para reclamações sobre o sistema o senhor deveria dirigir-se para "Reclamações em geral". Por favor, aguarde um instante que eu vou transferir sua ligação.

- Não! Espere!

- Obrigada, tenha um bom dia!

La donna è mobile
Qual piuma al vento,
Muta d'accento — e di pensiero.

- No momento todos os nossos terminais estão ocupados. Por favor, aguarde até que um de nossos atendentes possa lhe atender. Sua chamada é muito importante para nós. Por favor, aguarde.

Sempre un amabile,
Leggiadro viso,
In pianto o in riso, — è menzognero.
È sempre misero
Chi a lei s'affida,

- Telereclamação boa tarde, quem está falando é Daniela, em que posso ajudar?

- Ola, Daniela. Eu na verdade queria fazer uma reclamação sobre política. Só que daí o sistema de vocês só está programado para aceitar resposta se eu sou de esquerda ou se eu sou de direita. Acontece que eu não sou nem uma coisa nem outra.

- Entendo, senhor. O senhor gostaria de fazer uma reclamação a respeito disso?

- Também. Mas o fato foi que eu liguei para fazer uma reclamação sobre política e...

- Sinto muito, senhor, mas aqui é o terminal de reclamações gerais. Aguarde um instante que eu vou transferir sua chamada.

- Mas...!

- Obrigado, e tenha um bom dia.

La donna è mobile
Qual piuma al vento,
Muta d'accento — e di pensiero.
Sempre un amabile,

- No momento todos os nossos terminais estão ocupados. Por favor, aguarde até que um de nossos atendentes possa lhe atender. Sua chamada é muito importante para nós. Por favor, aguarde.

Leggiadro viso,
In pianto o in riso, — è menzognero.
È sempre misero
Chi a lei s'affida,
Chi le confida — mal cauto il cuore!
Pur mai non sentesi

- No momento todos os...

- Telereclamação boa tarde, quem está falando é Júlia, em que posso ajudar?

- Olá, Júlia. Eu tenho uma reclamação política para fazer.

- Sim? O senhor é de esquerda ou de direita?

- Eu sou coisa nenhuma. Aliás, essa história de tentar enquadrar todo mundo dentro de um modelo em um espectro unidimensional de esquerda e direita já está para lá de passado. E é por isso que eu gostaria de reclamar de...

- Desculpe senhor, mas o senhor só pode fazer uma reclamação a cada ligação. A não ser que o senhor seja cliente preferencial. O senhor é cliente preferencial?

- Mas eu ainda nem comecei!

- Desculpe, senhor, mas o que eu acabei de ouvir foi uma clara reclamação de cunho político mostrando insatisfação de sua parte do raso modelo de classificação política por parte dos programadores do terminal da nossa empresa. É isso, senhor, ou eu entendi errado?

- Ehn, sim. Quero dizer, não! Oras, eu liguei para reclamar de um assunto de extrema importância e simplesmente não consigo passar pela pergunta se sou esquerda ou direita! O que eu queria mesmo reclamar é do...

- Senhor, por favor. Essa foi a segunda reclamação feita em uma única chamada. Se o senhor é um cliente preferencial, por favor, digite...

- Mas eu ainda nem comecei!

- Senhor, por favor, não há motivo para levantar a voz. O senhor reclamou da qualidade dos nossos serviços. É a segunda reclamação, mas esta não é política, portanto eu vou transferir-la para outro terminal.

- Não! Aquela bosta de musiquinha não!

- Esta é sua terceira reclamação...

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Entre os Crentes e os Cínicos

A realidade só é mesmo digesta para aqueles que são cínicos ou para aqueles que são crédulos.

A frase original não é minha e eu não me lembro quando a li, nem de quem ela é nem sua forma original. Adapto-a às minhas próprias necessidades.

A frase é especialmente verdadeira no caso de Israel. E é mais válida ainda nos dias de hoje. Tenho reparado que, simplificando um monte, o povo se divide em esquerda e direita. Quando o governo é de esquerda, o povo de esquerda se torna crédulo, o povo de direita se torna cínico. Agora, quando o governo é de direita, o povo da direita se torna crédulo, e o povo esquerdista se torna cínico.

Alguns (como este que vos escreve) seguem cínicos haja este ou outro governo . Mas acho que nunca vi ninguém que siga crédulo por vários governos seguidos.

Vamos usar como exemplo, para tentar simplificar as coisas, o atual governo.

Para quem ainda não reparou, o atual governo, liderado por Biniamin Nataniahu, é de direita. Não uma direitinha qualquer, mas uma mega direita, uma coalizão com ultra-nacionalistas de um lado, ultra-religiosos de outro, uma agenda conservadora até mesmo no plano doméstico.

Abro um parênteses aqui para advertir meus caros leitores a não se precipitarem em tirar conclusões a respeito da orientação dos governos de Israel baseados em pura retórica (Lieberman disse isso, Bibi disse aquilo, Barak afirmou aquele outro). A retórica é parte do cinismo, como virei a explicar mais abaixo. A classificação do posicionamento de um político tem, na verdade, a ver com o tipo de lei que este vem tentando promulgar, qual é o tipo de voto na Knesset, que políticas internas apoia. Como a imprensa internacional não se fixa muito em nomes de políticos relativamente obscuros, muito menos da politicagem de 2o e 3o escalão, fica parecendo que há uma sólida colocação que pode ser facilmente refletida na retórica internacional (Lieberman disse isso, Bibi disse aquilo, Barak afirmou aquele outro). Enfim, não há tal reflexo. Fim dos parênteses.

Dentre os diversos problemas enfrentados pelo atual governo, se destaca o dos colonos. Já faz mais de 30 anos que o colonialismo e o expansionismo são identificados com a direita israelense. Sendo o governo de direita (e cheio de representantes dos colonos), os colonos são os crentes, os anti-colonos são os cínicos. Nataniahu afirma para Obama que fará uma pausa nas construções nos assentamentos, lá vem os colonos (crentes) a chiar, acreditando que a política é a sério, e que é exatamente o que vai acontecer. Ficam os esquerdistas (cínicos) a lembrarem que nada do que o Bibi diz realmente é feito, e que, mais a mais, não faz sentido uma paralisação nas construções nos assentamentos. Ou bem se para permanentemente, ou se segue construindo como antes.

Na verdade só dei um exemplo conhecido para apresentar melhor o ponto. Ele nem sequer é o melhor exemplo. Os melhores estão dentro da política interna, gerados pelo 2o e terceiro escalões que a imprensa internacional nem se dignifica em noticiar (o que é uma pena - quem sabe alguém fora de Israel passasse a ter pena da gente e viesse tentar nos salvar de nossos políticos).

Aqui vai: O ministro da justiça, Yaakov Neeman, afirmou, durante um congresso rabínico, que "A glória passada deveria ser restaurada, que a lei da Torah seja a lei unificadora do Estado de Israel" em uma colocação claramente teocrática, retrógrada e política (dada a incompatibilidade de manter um sistema jurídico conciso e ter uma lei de 3000 anos de idade).

O ministro foi ovacionado pelos rabinos e criticados por todo o resto. Os que apoiam uma iniciativa dessas claramente relevam a impossibilidade de tal implementação e babam sobre esse sonho teocrático, ainda mais quando vem de um ministro. E assim se tornam crentes. Todo o resto, mortificado com a possibilidade de nos tornarmos de facto uma Arábia Saudita, mesmo sabendo da impossibilidade concreta de isso acontecer por decreto, fica aterrorizado. O suficiente para só poder seguir respirando fazendo muita crítica e piada a respeito. São os cínicos. Só sendo muito cínico para passar um susto desses vivo.

Uma outra aqui: O aqui já festejado ministro das finanças (festejado aqui, como cínico que sou) Yuval Steinitz pediu para a suprema corte parar de tomar decisões judiciais que fossem caras demais para o Estado. Quem não faz ideia do que significa democracia e divisão de poderes, aplaude a ideia, e como crente que são, realmente acreditam que agora o país estará redimido e terá seu futuro salvo. Os outros ficam tão aterrorizados que só o cinismo para salvá-los de um ataque cardíaco fulminante.

A última do Mossad? Só com muito cinismo, algum sarcasmo e uma dose de ironia (grossa, que a fina a gente reserva para assuntos mais sérios) a gente leva. A pior? A ideia (link não é o oficial do Ministério, mas de um fellow blogger que explica não só a ideia em si, mas o contexto da coisa) do Ministro da Informação Pública e da Diáspora e sua campanha de Hasbará popular. É literalmente rir para não chorar.

Houve quem escreveu, em geral dentro de regimes totalitaristas, que os cínicos são a desgraça da nação.

Acho que só quem viu seu país entrar em uma guerra inconsequente (mais de uma vez) entende que o que realmente mina a viabilidade de uma verdadeira democracia é a crença desvairada.

sábado, fevereiro 13, 2010

Rafi

- Preciso de um carreto, da Ben-Yehuda em Tel-Aviv até Bialik, em Ramat Gan. Quanto vai me custar?

- Qual é a carga?

- Um colchão e um estrado. Eu carrego tudo. Só preciso do transporte. Quanto sai?

- 200 Shekalim.

- Tá ótimo. - Tava caro. São todos bem caros. E se eu pechinchasse talvez ele baixasse o preço. Mas sou ruim nisso e não estava de bom humor. - Hoje às 6 você está livre?

- Ehn... Deixe-me ver. - Deu um tempo e depois voltou à linha: - Às 6, é? Onde?

- Na Ben-Yehuda, numero tal. Vou estar esperando lá embaixo com o colchão e o estrado.

- Colchão e estrado, né? Prá onde?

- Bialik, Ramat Gan.

- Que andar?

- Não importa. Eu carrego tudo.

- Certo. Vai custar 300 shekalim.

- Mas você acabou de me dizer que eram 200!

- Tá. 200.

O Rafi era um cara em alguma coisa entre os 50 e os 60 anos, mas com aquela cara acabada de de quem fumou a vida inteira. Tinha um cabelo grisalho, bem comprido, até os ombros, que ele não prendia e parecia que também não penteava. Bem magro, um corpo que parecia ser musculoso e encurvado para frente. Estava todo errado. Tinha que estar segurando uma Fender, com um cigarro de maconha pendurado nos beiços tocando hard blues em um palco mal iluminado. Mas estava dirigindo seu caminhão com meu colchão dentro. O caminhão sim que estava certo. Era um desses mercedinhos urbanos com caçamba de lona, toda pichada com spray de cores fosforescentes, desenhos psicodélicos e o telefone dele. Rafi - Mudanças. 054-Tal-Tal-e-Tal.

Subi com ele na cabine. O acabamento de plástico das portas e do painel davam dicas da idade do caminhão. No rádio tocava Galgalatz (pop streamline jabá). Então ele começou com aquilo que parece ser compulsão de todo transportador em Israel: meter-se na minha vida e contar a sua própria.

Depois do "O que é que você faz? Ah! Estuda! O que? E tem trabalho? Dá dinheiro?", ele começou a contar da vida dele.

No exército (não perguntei quando foi isso) ele havia estado em uma unidade de demolição.

- Demolição?

- É. Isso. De paredes a prédios inteiros.

Desmontavam e destruíam de tudo. Galpões, edifícios, construções em geral, pontes, torres - coisa velha no caminho, ou coisa nova mal feita, ou estruturas inimigas. Depois dos três anos obrigatórios, assinou contrato com o exército por mais tempo e acabou ficando mais quatro anos. Fez cursos no exterior e começou a usar explosivos como ninguém.

Depois desse período (e de reclamar do trânsito um bocado) ele contou que foi fazer aquilo na vida civil. Fez alguns cursos no exterior para poder validar seu conhecimento no exército. Depois de vários anos na área de demolição, com empresa própria e tudo, decidiu que não havia mais o que fazer na área. Não havia trabalho (que foi aliás, o lamento que o fez começar a contar a história toda). Vendeu tudo que tinha, comprou o caminhão (que pela cara devia ser aquele mesmo) e vivia de fazer mudanças.

Disse depois que tinha um Caffé seu, na esquina da Hertzel com a Wolfson, mas que o movimento era bem fraco.

Foi lá, aliás, comprando tubos de aço para fazer um dos meus projetos, que eu vi o caminhão estacionado (dentre outros vários) e peguei o telefone. Fiz questão de ver direito o lugar na outra vez que estive por lá. Dentro estava vazio, fora, numa das duas mesas, havia dois velhinhos marroquinos que pareciam ser habitués e jogavam conversa fora.

A musica? O mais brega dos pops orientais. Nada de psicho-rock dos anos 70.