quarta-feira, dezembro 19, 2007

Continho de Natal

Eram dois velhinhos sentados na praça. Tempo bom, lagarteavam, como de resto não sobrava muito mesmo para fazer, e olhavam os jovens (jovem para nossos velhinhos da história era qualquer um que passasse), as jovens e papeavem entre si.

- Vem chegando o natal...

- Pois é... Dizem.

- Como assim dizem? É um fato. Tirei a folhinha do calendário de hoje e lá estava: 20 de dezembro. Vem chegando o natal.

- Resta saber se é o natal que vem chegando ou somos nós que vamos chegando até ele.

- Você sempre foi um comunista nietzscheano.

- E você sempre foi um mal humorado fatalista... "vem chegando o natal..." – repetiu com vozinha de mongolóide. – Comentário mais besta, seu! Como se a televisão não fizesse questão de lembrar isso o tempo todo.

E o nietzscheano tirou uma maçã da sacola de feira, uma faca mais ou menos velha e começou a descascar, rodando a maçã e tirando uma espiral de casca perfeita.

- Além de comunista e filósofo de araque você ainda deu de virar noveleiro. E quem nos tempos de hoje ainda come maçã sem casca?

- Quem nos tempos de hoje ainda come maçã! Estou descascando porque a casca engata no aparelho dos dentes.

- Noveleiro, comunista, filósofo de araque e ainda por cima engraçadinho. Ô, Guimarães, bonito isso! Onde foi que você aprendeu a descascar maçã deste jeito?

Guimarães pegou a casca, que tirara inteirinha da maçã, em um fio só, e deu para o amigo.

- Viu só? Aprendi vendo novela. Tó prá você, que gosta tanto de casca de maçã.

- Dizem que tem mais vitamina que na maçã toda.

- Nem se apoquente com tua saúde, João. Vaso ruim não quebra. – Guimarães começou a comer a maçã tirando nacos com a faquinha e colocando os pedaços na boca.

Depois ficaram em silêncio, olhando o povo passar, João todo esticadão no banco da praça e Guimarães sentado curvado sobre a maçã que comia devagarzinho.

- É o natal desses dias que já não é mais como os natais de antigamente, Guimarães.

- Você de novo com essa história de natal?

João ignorou o comentário do outro:

- Aquela coisa de dar presente prá todo mundo, ver os netos se debandarem depois da ceia, ser espizinhado pelo porteiro o ano inteiro porque esqueceu de mandar um cartão de natal. As pessoas não estão mais nem aí para aquelas coisas realmente boas que tinha no natal na nossa época.

- Tá ficando velho, hem amigo João! Depois dos oitenta deu para ser saudosista.

- Diz que você não sente saudades!

- Eu tiro a casca por que gosto de descascar a maçã assim... Ninguém faz isso melhor que eu no mundo inteiro. Faz uns quarenta anos que não errei uma única maçã. Nem gosto muito de maçã. Até prefiro a maçã com a casca. Mas meu barato mesmo é descascar.

- Ô, Guimarães! Eu sentindo aqui minhas saudades dos velhos natais e você vem me falar do teu tesão por... por... descascar maçã?!

- Você perguntou.

- Perguntei faz uns trinta minutos! Nós dois velhos. Eu saudosista e você esclerosado!

- João, cada uma! Dois velhinhos sentados num banco de praça falando de natais antigos. Essa é boa. Eu posso ser velho, mas não virei ainda um clichê.

- Quer falar sobre o que então, Guimarães?

- Sexo.

- Ah, claro. Sexo.

- Oras! Por que não, realmente? Só porque eu sou velho não posso falar sobre sexo?

- Falar a gente ainda pode, né? – Depois fez com a mão como se espantasse uma mosca: - Noveleiro tem cada uma!

- Tá bom, João. Vamos falar sobre o natal de 1938. É o assunto que eu escolho quando quero que meus netos dêem no pé e me deixem em paz.

- Guimarães, natal, natal passado e sexo é questão de assunto. Tudo está valendo quando há contexto.

- Agora quem anda a filosofar é você. Quer dizer então que tem tudo a mesma importância para você?

- Não foi o que eu disse.

- Tá. Então me diz, João. O que você acha mais especial. Natal ou Sexo.

- Diz você!

- Prá mim, sexo.

- É mesmo? Quero ver agora, justifique!

- Natal, amigo João, natal tem todo ano...

E tirou uma laranja do sacolão da feira.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gabriel você é de+, escreve muito bem. Continue, sou sua fa há muito tempo.
Ester